Era tão boa a vidinha no campo...







terça-feira, 10 de março de 2009

Estórias do mê Alegrete- FORA DE HORAS



Corria o tempo com a lentidão habitual no me monti. Até havia quem dissesse que para correr assim mais valia nem se moer e parar de vez. O calor era o mesmo dos meses de Julho, embora fossem frias as noites e o calendário mantivesse todas as folhas intactas. Era de folha caduca mas há já alguns anos, que sem se saber como nem porquê, mantinha as folhas de sempre..nem sei de que ano, mas pela cor devia ser de um ano muito antigo. Muitas vezes ficava ali a olhar pra ele na tentativa de lhe ver cair as ditas..mas nada acontecia. Nesse dia algo mais estranho se passou, o relógio de parede, que dava as horas ao som de uma Ave Maria que arrepiava até a alma, simplesmente silenciou..nada, nem horas nem minutos nem coisa nenhuma que me fizesse lembrar às contas andava. Como era a corda ainda pensei que a mesma tivesse esticado demais, que partira ou que me tivesse esquecido de dar à manivela. Mas não..desse eu as voltas que desse, com a corda toda, todinha, o magano nem se mexia. O ponteiro das horas estava bem juntinho ao dos minutos, assim num aconchego de solidões que até enternecia ..os números, suspensos na aflição de que se completasse o tempo para que novamente fossem o centro das atenções dos olhares aflitos..daqueles que nada fazem sem confirmar a pontualidade ou o atraso dos seus actos. Procurei a medo o relógio de bolso, que há muito já era de gaveta, deixado plo meu avô aos netos dos netos que haveria de ter..e com tal devoção estava guardado, sempre limpo e a trabalhar não fosse chegar a hora de os netos dos seus netos o quererem ver..como objecto do tempo que nem sabiam ter. Bem..tinha razão para ser a medo a minha procura, ao abrir a gaveta, retirei o lençol bordado à mão ainda cheirando a novo, cheirava a novo devido a nunca ter sido usado..mas a lembrar o tempo em que as mãos sabiam deixar a beleza dos sonhos das virgens no tecido que se desejava depois ser suado por noites e noites de paixão..mas dizia eu (desculpem, perco-me sempre plos sonhos)..que bem debaixo do lençol de linho, o relógio parara o tempo na mesma posição que o relógio de parede. Parecia que na mesma hora os dois se tinham combinado a deixar de ser… Nem sei o que me levou a sair de casa a correr..mas segurei a saia e desatei a correr estrada fora até à casa da Ti miséria. Bati de tal maneira que ela abriu logo a seguir..adivinhado que coisa má acontecera…contei-lhe do sucedido e perguntei-lhe se ela sabia o dia, o ano, o mês, as hora ou os minutos, e enquanto esperava resposta acho que contive a respiração..não fosse com isso gastar o pouco tempo que ainda houvesse por ali. Ela olhou-me com aqueles seus olhos de sempre e sorrindo disse: Oh comadri Mari zei atão vocei nam sabe que eu nem tenho tempo? Nunca o marquei porque achei nem precisar, depois ouvi dizer que eu tinha o tempo contado, mas como dizem sempre tanta coisa que não é… nem acreditei..como vê, ainda aqui ando plo mundo e nem sei para quando o meu fim. Agradeci-lhe meio envergonhada por me sentir assim..nesta aflição por não saber o tempo que passa… Não me fiquei por ali e segui até ao monti do compadri Jaquim. Ele deveria saber o que se passava! Encontrei-o a ordenhar as vacas e assim que me viu levantou-se tirando o chapéu cumprimentando-me como sempre o fazia. Bons olhos a vejam comadri. Eu, sem perder tempo (ui que parvoíce a minha, como podia perder algo que nem sabia se ainda tinha)..contei-lhe a minha aflição, de o tempo não passar como antes, de as horas não andarem nos relógios como até então. E fiquei de olhos bem abertos a tentar com isso ouvir melhor (outra das minhas maluqueiras) o que ele me teria pra dizer. Ai comadri comadri..olhe, eu sigo-me plo sol..e nunca gado meu se queixou de atraso na refeição. Disse ele enquanto ria com um certo ar de brincadeira. Despedi-me dele sem dizer mais nada, coisa que não gostava era que se rissem das minhas preocupações. E sai dali com pouca vontade de procurar mais alguém para contar o que me acontecera ao tempo. Não tá certo, não tem jetos, nam podi seri!! Dizia eu teimosamente com os meus botões da camisa branca e de folhos na gola (ainda do tempo em que eu tinha vista para costurar..mas pronto..lá tou eu a falari do tempo outra vez) Tinha mesmo que resolver aquele mistério sozinha!! Passei plo galinheiro com a ideia de por o galo a cantar, mas depois pensei que alem de ser uma ideia meio parva, pois o magano desde que houve o tal dia da revolução dos cravos canta como e quando quer, seria também uma tarefa difícil de conseguir visto que com as modernices no me monti, já não dá para distinguir os galos das galinhas e lembrei-me depois que sem os olicus de ver ao perto teria que ser plo tacto..e..bem, não me apetece falar disso!! Já meio desesperada, quase a ter um ataque dos meus, tive uma ideia fantástica, mesmo boa..assim daquelas ideias que..bem, só eu mesmo!! Corri a buscar 2 garrafas de vinho vazias, um funil, cola tudo e um punhado de areia.Com muito jeitinho coloquei a areia numa das garrafas usando o funil, depois com mais jeitinho ainda (sim..sou capaz de milagres) juntei as garrafas pelos gargalos, bem coladinhos e já sentada no chão preparei-me para ver se resultavam… Contive a respiração mais uma vez, esbugalhei os olhos, nem pestanejava e com o coração a bater como louco (mais do que já era) virei as garrafas e ..e.. grão a grão a areia caia lentamente da garrafa cheia de areia para a garrafa vazia. Só se ouvia o tic tac do meu coração..a marcar a queda do tempo… Turvaram-se me as vistas…sempre que me emocionava deixava de ver nitidamente a vida. Mas estava feliz, sim, o tempo existia e era assim, como sempre..lento e soava como o coração. Agora só tinha de descobrir quanta areia cai numa hora !

2 comentários:

  1. Muito engraçada esta dissertação acerca do tempo. Para descobrires quanta areia cai numa hora podes seguir a sugestão do compadre Jaquim, usando o sol, fazendo um relógio de sol :) depois é só observar ambos, o relógio de sol e a ampulheta que fizeste. Para quê tanto trabalho dirás tu, assim sendo via o tempo directamente no relógio de sol! Ok ok então e de noite? Hum? :P
    Beijinho.

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cavadelas