Era tão boa a vidinha no campo...







domingo, 6 de junho de 2010

Estórias do Mê Alegrete - A Miséria Está Pior


Há muito que não vos conto como vai a vidinha aqui no mê Alegrete.
Sabem como é, muitos afazeris, corrida prá cá, andanças pra lá e quando damos pela genti já não há tempo para agarrar cas mãos..foi-se todo entre os dedos.
Bem mas hoji nam sei como me arranji mas lá consegui fechar a mão ainda com um grãos do dito dentro dela.
Migalhinhas tantas vezes desaproveitadas…
A vida nam tá fácil por aqui nam senhori, dizem que é girali mas eu cá não sei, acho que cada um sente o que está mais perto, o que se vê com a ponta dos dedos e se consegue cheirar faz-nos bater mais o coração, pro bem e pro mal.
A Ti Miséria nam se queixa, habituada a não ter, mas eu sei que está pior.
Quis ir com ela à vila pra que o médico a escutasse, a visse e receitasse uma mesinha qualquer, sei lá, um chá, umas ervas pra fazer defumadouro, qualquer coisa…eu queria era vê-la menos assim…
Mas disseram-nos que médico só daqui a 6 meses, ela baixou os braços resignada e ficou-se no seu silêncio.
Ora ca porra!!
Griti eu
Então as pessoas assim podem morrer. Seis meses?? Seis meses??
E estando eu a gritar com o telefone, e este aos saltos de uma mão prá outra, ouvi lá do outro lado a resposta:
Pode sempre ir à bruxa.
Quei????
Ai passi-mi!
Desligui aquilo e fiqui a remoer no que ouvira do lado de lá.
A miséria acreditava nessa coisa, ainda bem que ela não ouvira aquilo senão lá teria que a levar à bruxa mesmo.
Ainda me lembro, uma vez que me convenceram a ir a uma, fui contrariada e ainda por cima tive que levar a melhor galinha e dois garrafões de azêti. Quando lá chegui fiquei logo desconfiada (tá beim, já antes estava mas..fiqui mais pronto).
Senti-me na sala de espera, já lá estavam duas senhoras com ares de serem de fora. Não traziam galinhas nem garrafões de azêti, nem sei como pagariam a consulta. Senti-mi no meio das duas e fiqui logo a saber que o mal duma era o mau olhado que tinham deitado ao filho, e por isso ele andava embeiçado por uma rapariga de más familias, a outra era pro mondi que o marido andava com poucas vontades…já era a segunda vez que cá vinham e disseram muito bem da Dona Giraldina, uma amiga, não queria nada pra ela…uma santa, diziam.
Nam me meti na converseta e esperei pela minha vez.
Nam sei se vos disse que eu resolvi aceitar, contrariada, ali ir porque já ia pra mais de duas semanas que as galinhas nam punham ovos, as vacas nam davam leti, o feijão frade estavam a mirrar e os pés de salsa cresciam que nem couves.
Bem, adiantando a conversa, só vos posso dizeri que tive azar. A senhora nam dominava assuntos do campo, ainda me mandou cortar os pés de salsa pela raiz, coisinha que lhe tiri logo do sentido, pediu-me pra lhe levar o galo pra ela ver se seria ele o causador das desvontades das galinhas e disse-me que quanto às vacas não havia nada a fazer, que havia ordens do estrangeiro para baixar a produção do lêti e quem sabe as próprias vacas achassem por bem nem se dar ao trabalho…
Sai dali na mesma como fui, quer dizer..quase na mesma…com menos uma galinha e dois garrafões de azêti.
Desde esse dia nam posso ouvir falar em ir à bruxa…entram-me logo caloris.
Mas tinha que fazer alguma coisinha pra que a miséria melhorasse…
Resolvi então escrever todos os sintomas num papeli e estudar o caso.
Ora bem:
- Febres muito baixas.
- Alergia ao marisco, carne, peixe fresco, fruta tropicais, doces e bebidas que nam sejam água.
- Dores de cabeça logo pela manhã e chegam a durar até à noite.
- Insónias quando quer dormir e nam consegue, também diz que tem insónias quando nam tem sono…resumindo..nam dromi!
- Alucinações, vê fantasmas nas notas de 100 aérios (assusta-se sempre mal aviste uma ao longe)
- Más fígados, teima com o carteiro em como ele ainda nam lhe trouxe a carta da reforma, quando a dita é feita por transferência bancária (nam deixa de ter razão…ele nam lhe a trouxe, hummm vou ter que repensar este sintoma).
- Dores de cabeça todos os dias de pagamento da renda de casa, luz, água, gás e conta na mercearia.
- Comichões quando ouve falar o 1º Ministro na TV
- Fica afónica com frequência, principalmente se vai a manifestações.
- Dores constantes pelo corpo todo, cada vez que vai apanhar azeitonas, cogumelos, espargos ou agriões.
- Vicio do trabalho, mesmo quando estava desempregada ou quando o patrão dizia que não havia nada pra fazer…
- Pouco apetite, nunca tem fome quando põe a mesa pros outros…
- Afrontamentos, quando quer gritar e lhe tapam a boca..
- Analfabetismo voluntário, deixou de saber ler os jornais
- Tensão baixa quando sobem os preços
- Tensão alta quando descem os ordenados (sempre do contra a minha comadri)
- Marcas da vacina contra a raiva (deve ser sintoma de algo..)
- Preferência por médicos de família, mesmo quando nem a tem nem ele está de serviço.
- Má circulação, principalmente quando anda de transportes públicos em pé.
- Muitas fezis.
- Anemia crónica..fica branca quando vê ao preço que está o pão.
- Tendência para ansiedade…suspira muito cada vez que vê quanto dias faltam pró fim do mês...e diz constantemente " ai a minha vida..ai a minha vida"
- Dupla personalidade, fala da miséria como se fosse outra…que não ela.
- Menopausa precoce…deve ser da anemia.
- Fraqueza na franqueza com que fala dos seu males..sempre em voz baixa.
- Dores na falta de dentes.
- Constipações frequentes…devia às correntes de ar lá em casa…tem sempre a porta aberta.
- Vertigens, diz nunca conseguir chegar lá acima.
- Tendência para a queda em todos os buracos do caminho…falta de cálcio dizem..
- Coração grande demais…
- sonhadora crónica.

Bem…acho que assim de repente nam me lembro de mais nada, tirando o ela ficar sempre a manter aquele olhar de esperança e força de vontade…mas isso nam deve ser dos sintomas piores.
Agora vou ter que procurar na intreneti ou na ciclopédias que raio de maleita tem a minha comadri..nem que tenha que pagar com a melhor galinha e 2 garrafões de azêti!!


Foto: Eu, a Ti Miséria, a comadri Saudade e a Ti Aurora ainda quando havia saúde e trabalho no campo.

1 comentário:

  1. A maleita da tua comadre, é cada vez mais frequente e parece que se pega pois tendencialmente tem-se vindo a generalizar... Tem a ver com o seu próprio nome mesmo MISÉRIA não franciscana mas portuguesa mesmo infelizmente...

    Beijinho.

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cavadelas